quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Menina - homem.



A matinée lotava aos domingos no cine São José da cidade de Senhor do Bonfim. A menina de franja certinha não desgrudava os olhos da telona. Encantava-a aquele mundo de faz de conta. Transportava-se. Vestia as fantasias que rodopiavam nas fitas que assistia.

Apesar do seu ar angelical a menina gostava de ser “o artista principal”. Era fã dos bang bang. No quintal da casa de sua casa se dizia Ringo, Django.

Com seus revolveres feitos de pedaços de galhos de árvores presos as surradas calças velhas e enormes do pai, enfrentava os inimigos corajosamente. Era um bum, bang, pummmmm....infernal!

A meninada corria esbaforida do feroz e violento revolver da artista boa de gatilho.

A menina era mesmo atrevida. Os meninos reclamavam. Não aceitavam uma menina a comandá-los.

A realidade dos filmes não era essa: na telona os “moçinhos bonitões” derrotavam os inimigos e como prêmio tinham a seus pés e braços as derretidas moçinhas.

Mas, a menina dona do quintal não abria mão do papel central. Ou era ela o moçinho ou nada de brincadeira.

Chateados, deixavam-se vencer pela menina mandona.

Para a menina não lhe interessava nem um pouco o papel das moçoilas dos filmes de faroeste. Achava-as mimadas e indefesas. Seu negócio era ação e muita adrenalina.

Sendo assim a menina-homem corria, subia em árvores, rolava no chão e atenta derrotava seus inimigos ora com seus revolveres ora com murros poderosos e certeiros.

Chegava a abusar no momento das pancadarias.

Movida pela emoção do personagem exagerava nos murros, tapas que acabavam machucando os colegas de brincadeira.

Tudo estava maravilhosamente bem até o momento que nossa artista valentona não se machucasse.

Ela podia tudo. Mas nada nem ninguém deviam sequer em pensamento lhe ralar a mão.

Afinal de contas ela era a “artista”. E artista bate, manda. Cai e não se machuca.

No cinema era assim...

Mas, a nossa destemida menina não podia ver sangue. Era se arranhar um tiquinho para o frundunço começar.
A menina berrava de um jeito que só o pai seria capaz de lhe fazer calar a boca.

Era o pai aparecer para a menina calar. Ele era o salvador, o seu verdadeiro herói.

O que os meninos não sabiam é que a menina associava sangue à perda.

A morte lhe era de um vermelho escuro quase negro. Ela se sentia dominar pela escuridão que lhe levava os sonhos e junto a eles a pessoa que ela mais amava: seu pai.

As brincadeiras se esvaiam e ela se sentia só, sem herói para lhe preencher o vazio que lhe comprimia o peito e lhe deixava longe das travessuras e risadas da infância que era sua perda maior.





terça-feira, 8 de novembro de 2011

Meu reencontro Com Mary Lu


Sentei-me embaixo da cajazeira para observar Mary Lu e seus cabritinhos. Minha cabritinha de estimação agora era mãe zelosa, acolhia seus meninos com lambidas carinhosas.

Um carinho imenso tomou conta do meu coração. Aquela cena amorosa me fez recordar a cabritinha desengonçada que berrava para entrar em meu quarto e se enroscar em meus braços.

Fiquei um tempo sem ver minha cabritinha. Sabia que se a visse não resistiria e a traria de volta comigo. Faria pirraça e convenceria meu avô.

Deixei o tempo passar. Meu avô até se surpreendeu com minha atitude. Achou que eu tivesse me esquecido do meu animalzinho.

Como gente grande é boba. No meu coração Mary Lu estava mais presente do que nunca. Criança quando gosta não se esquece de quem gostou.

Acordei naquela manhã com o estômago revirando. Assustada e enjoada gritei para meu pai me acudir.

Paciente e carinhoso meu painho me abraça.

Com a voz entrecortada desabafo:
- Paiiiii, eu sonhei que eu comia a Mary Lu com arroz e feijão!

Meu pai ri. Séria, repreendo-o.
- É muito triste comer quem a gente gosta mesmo que seja de mentira!

Depois daquele sonho não dei sossego a meu avô. Queria ver Mary Lu. Certificar-me que a minha cabritinha não teria ido parar na panela de ninguém.

Aliviada volto meu olhar para Mary Lu. A ex-cabritinha, agora cabritona e mãe não me dera atenção. Confesso que fiquei incomodada. Mas, o que mais me interessava era vê-la a salvo de virar ensopado.

Fiz meu avô me prometer que isso nunca aconteceria. Queria que Mary Lu visse seus filhos crescer e que fosse avó.

Satisfeita com a promessa do meu avô fui até a cabrona – mãe me despedir.

Passo levemente a mão pela cabeça do animal que sossegado solta um bée macio. Sorrio e ajoelho-me para melhor lhe acariciar. Os cabritinhos resmungam, começam a berrar. Não gostavam da minha presença. Resolvo então, acariciá-los também.

Que ideia desastrosa!

Ao longe avisto um bodão em disparada.

Esperta, consigo correr a tempo de não ser atingida pelos chifres do marido de Mary Lu.

Fiquei com raiva do bodão valentão. Quem ele pensava que era para agir dessa forma com a pessoa que cuidara de sua esposa? Ele sim deveria virar ensopado.

Não gostei nem um pouco daquele animal fedorento e metido a brigão.

Grudada a meu avó fazia caretas para o bicho de cara emburrada.

Desolada entrei em casa. Meu pai ficou sem entender.

Dessa vez não quis conversa. Não queria falar nada nem com ele nem com ninguém.

Na verdade é que eu não queria que Mary Lu tivesse crescido.

Em meu coração ela continuava aquela cabritinha desengonçada que procurava abrigo em meus braços. E era assim que eu a queria...!